quinta-feira, 9 de agosto de 2007

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A vanguarda dos pobres
Hiroshima foi destruída num piscar de olhos por uma bomba lançada de um avião a hélice B-29 do Corpo de Aviação do Exército dos Estados Unidos, numa manhã de verão, segunda-feira, 6 de agosto de 1945. A bomba não era química, como todas as outras produzidas até então, mas sim atômica, construída para liberar as energias que Einstein descrevera. Era um artefato simples, tubular, que qualquer pessoa poderia hoje construir numa garagem. Volumosa e negra, com cerca de três metros de comprimento, pesava 4400 quilos. Caiu, apontando para baixo, durante 43 segundos, e para alcançar o máximo de efeito nem chegou a tocar o solo. A 580 metros do chão, ela disparou uma massa opaca e cinzenta de urânio altamente enriquecido através de um tubo de aço ao encontro de outra massa do mesmo material refinado, criando assim um combinado de cerca de sessenta quilos de urânio. Proporcionalmente à área da superfície, essa massa era mais do que suficiente para atingir o "estado crítico" e pôr em marcha uma cadeia incontrolável de reações de fissão, durante a qual partículas subatômicas denominadas nêutrons colidem com núcleos de urânio e liberam novos nêutrons, que por sua vez colidem com outros núcleos em um processo rápido de autodestruição. As reações só podiam sustentar-se por um milésimo de segundo e utilizaram integralmente menos de um quilo dos átomos de urânio antes que o calor resultante forçasse a interrupção do processo devido à expansão. O urânio é um dos elementos mais pesados do nosso planeta, quase duas vezes mais pesado do que o chumbo: novecentos gramas dele correspondem a somente três colheres de sopa. Não obstante, a liberação de energia sobre Hiroshima produziu uma força equivalente a 15 mil toneladas (quinze quilotons) de TNT, alcançou temperaturas mais altas do que as existentes no Sol e emitiu impulsos de radiação mortal que viajavam à velocidade da luz. Mais de 150 mil pessoas morreram.
O carrasco foi um piloto comum chamado Paul Tibbets, então com 29 anos e que atualmente vive no estado de Ohio. Ele não concordava com a matança, mas também não se horrorizou com ela: era um técnico de vôo, afastado do morticínio pela altitude e pela velocidade, e protegido por uma cabina pressurizada e aquecida. Naquela manhã o céu estava calmo, sem sinais de inimigos. O B-29 voava a 9500 metros de altitude em ares tranqüilos. Deu uma guinada e subiu quando a bomba se desprendeu e começou a cair. Tibbets manobrou rapidamente a fim de evadir-se e virou a cauda do avião para o local da destruição. Quando a bomba explodiu, já bem atrás e bem abaixo, coloriu o céu com os mais belos tons de azul e cor-de-rosa que o piloto jamais vira. A primeira onda de choque chegou sacudindo a atmosfera e alcançou o avião por trás, causando um forte solavanco, que, segundo o acelerômetro da cabina, chegou a 2,5 g. A sacudida se assemelhava a uma explosão bem próxima de uma bomba antiaérea, ou àquela que ocorre quando um jipe passa por um buraco na estrada. Sobreveio, então, uma segunda onda de choque: um reflexo proveniente do solo, como um eco da primeira e por isso menos intenso. Tibbets sentiu o gosto da saliva na boca. Viu a nuvem que subia sobre Hiroshima e, como seria de esperar, não sentiu pena.
Mas Hiroshima não lhe fez bem. Embora tenha chegado ao posto de brigadeiro na Força Aérea dos Estados Unidos, antes de se tornar presidente de uma companhia de jatos executivos, foi perseguido pelo estigma de ter sido o responsável por tirar a vida de tantas pessoas e passou a mostrar-se irritado ante qualquer insinuação de que cometera um mal. Não seria realista, talvez nem mesmo justo, esperar que ele se arrependesse, porém, com o passar do tempo, foi isso que as elites americanas fizeram - depois de ter confiado a ele o lançamento da bomba. Já aposentado, Tibbets começou a viajar pelo país fazendo palestras para aficionados por guerra e outros reacionários, além de aparecer em eventos aeronáuticos, suponho que com fins de relações públicas. Na década de 1990, envolveu-se furiosamente em uma controvérsia menor a respeito da exibição da parte frontal do seu avião, o Enola Gay, pelo Smithsonian Institution, e acusou as elites de manipularem a opinião pública em favor dos próprios interesses. Considerava-se um piloto e um soldado, com o que queria dizer que era um homem simples. Vendia lembranças pela internet, inclusive um modelo da bomba atômica, por quinhentos dólares, na escala de um por doze, muito bem executado e montado sobre uma base de mogno sólido, acompanhado de uma placa autografada. Para os menos endinheirados, oferecia uma folha com 36 selos comemorativos que mostravam um B-29 subindo acima de um cogumelo atômico, com excelentes detalhes da fumaça ebuliente que saía do solo. Tibbets pode ser cabeça-dura, mas pelo menos foi coerente. Quando o escritor Studs Terkel o entrevistou em 2002, onze meses depois dos ataques do 11 de Setembro, ele não lamentou a tristeza da guerra nem refletiu sobre as dificuldades de enfrentar um inimigo que não representa um Estado e defendeu com franqueza uma resposta nuclear. Contra quem: Cabul, Cairo, Meca? E ele disse: "Nós também vamos matar pessoas inocentes, mas nunca lutamos nenhuma guerra em nenhum lugar do mundo sem que eles [queria dizer nós] matassem pessoas inocentes. Se pelo menos os jornais parassem com essas baboseiras do tipo 'Vocês mataram tantos civis!'. Falta de sorte deles, de estarem lá na hora".
Tibbets falava por experiência própria e, em um sentido estrito, tinha razão: na verdade faltou sorte a todos os inocentes que morreram sob as suas asas em 1945. Mas aquelas mortes não foram mera casualidade - assim como no caso das vítimas do World Trade Center. O fato é que Hiroshima foi escolhida sobretudo por ser um alvo civil e porque até então havia sido parcialmente poupada dos bombardeios convencionais, preservada que fora para a demonstração o mais dramática possível das conseqüências de um ataque nuclear. Três dias depois, a cidade de Nagasaki foi atingida por um artefato ainda mais potente - uma sofisticada bomba de implosão construída em torno de uma esfera de plutônio, com dez centímetros de diâmetro, que superou o limiar do "estado crítico" determinado pela relação peso/superfície ao ser comprimida com simetria por explosivos cuidadosamente distribuídos. O resultado: uma explosão de 22 quilotons. Embora boa parte da cidade estivesse protegida por colinas, cerca de 70 mil pessoas perderam a vida. Há quem diga que uma explosão sobre o mar, ou mesmo sobre o porto de Tóquio, poderia ter levado os japoneses à rendição com menos perdas de vida - e, se isso não acontecesse, outra bomba já estava pronta. Mas a intenção era aterrorizar ao máximo uma nação e para alcançar tal objetivo não há nada que se compare a um ataque nuclear à população civil.
É pena, mas esse é o mundo em que vivemos. E as cidades são alvos fáceis. Elas são inflamáveis, densas e frágeis. Isso é válido para Nova York, com todo o seu concreto e aço de alta qualidade, e igualmente para os novos conglomerados urbanos da Ásia. Além disso, há diferenças significativas na dinâmica das explosões nucleares, que dependem fortemente do tamanho da explosão e da altitude em que ela ocorre. Uma bomba do porte da de Hiroshima que explodisse no nível da rua na Times Square destroçaria a parte central de Manhattan e produziria uma nuvem de fragmentos radioativos que, depois de levados pelo vento, poderiam pousar, por exemplo, em muitas áreas do Queens. Para efeito de comparação, na Coréia do Norte, uma bomba do mesmo porte que fosse detonada oitocentos metros acima de Seul causaria mais destruição mas menos contaminação radioativa. Essas variações, contudo, são simples detalhes quando comparadas ao resultado geral: qualquer cidade atingida por uma bomba nuclear será terrivelmente afetada. E uma bomba com o porte da de Hiroshima está bem ao alcance da capacitação de um bom número de países. Quando um artefato como esse entra em ignição, a reação nuclear em cadeia dura um milionésimo de segundo. Nesse intervalo, uma emissão letal de nêutrons se espalha em todas as direções, penetrando nas paredes e no corpo das pessoas da vizinhança imediata, mas perdendo energia em algumas centenas de metros, à medida que os nêutrons colidem com as moléculas de ar. Simultaneamente, e durante os segundos que se seguem, um impulso de raios gama, de natureza eletromagnética e similar à luz, mas muito mais potente, voa pela cidade, em níveis perigosos, até uma distância de pouco mais de três quilômetros. Tudo isso já é muito sério - porém se trata apenas do começo. Mesmo combinadas, as duas formas de radiação (conhecidas como radiação inicial) representam apenas 5% da energia liberada pela bomba. Outros 10% são liberados bem depois da detonação, pelos resíduos radioativos que podem cair sobre o solo ou permanecerem em suspenso na atmosfera. No entanto, todo o restante da energia da bomba - 85% do total - transforma-se em onda expansiva e calor. As bombas nucleares do porte da de Hiroshima destroem as cidades esmagando-as e incendiando-as. Esses efeitos matam praticamente todos os que de qualquer maneira já estariam morrendo em decorrência da radiação aguda e se espalham pelo ambiente, matando muito mais. Eles se iniciam em menos de um milionésimo de segundo, quando o processo de fissão libera enormes quantidades invisíveis de raios X, que, em baixas altitudes, são absorvidos pelo ar em poucos metros. O calor resultante, elevado a dezenas de milhões de graus, aumenta a pressão no interior da bomba, que, ao se vaporizar, a torna milhões de vezes mais alta do que a pressão da atmosfera circundante. Ainda dentro do primeiro milionésimo de segundo, forma-se uma bola de fogo ultrabrilhante que consiste de resíduos gasificados da própria bomba e de ar. A bola de fogo expande-se brutalmente, ao mesmo tempo que toma altura. Nos três segundos subseqüentes à explosão de vinte quilotons, ela alcança o tamanho máximo, de cerca de 460 metros de diâmetro. Se tocar o chão (desde que o ponto de detonação esteja no solo ou a menos de 230 metros de altura), vaporiza não só a terra como todas as estruturas que encontra, e começa a levantar grandes quantidades de poeira e fragmentos, formando uma coluna intensamente radioativa que sobe com extrema violência. Com as cinzas e o pó, sobem pela coluna centenas de subprodutos da fissão, muitos dos quais são radioativos, mas decaem com tal rapidez que perdem a radioatividade antes de voltar a tocar o solo. Trata-se de uma característica comum da maioria dos produtos da fissão radioativa. Passadas sete horas da detonação, as emissões radioativas chegam somente a 10% do que eram seis horas antes, ou uma hora depois da explosão. Dois dias mais tarde, a radioatividade já terá baixado a apenas um centésimo deste último valor. A perda de radioatividade explica por que as pessoas que vivem na direção para a qual se desloca a nuvem radioativa provavelmente conseguirão escapar, mesmo em uma grande explosão (embora possam experimentar problemas médicos a longo prazo), se não ficarem expostas durante as primeiras horas que se seguem à detonação. É algo difícil para os que não estão especialmente preparados para se proteger e, em conseqüência, muitos ficarão doentes ou morrerão por causa da radiação. Mas a radioatividade residual não é o maior perigo de uma bomba de vinte quilotons.
Voltemos, então, à pequena fração inicial de um segundo. Com o seu crescimento, a bola de fogo torna a irradiar parte da energia sob a forma de dois impulsos térmicos. Os mecanismos que causam esses impulsos têm a ver com as temperaturas intensas e a dinâmica interna da bola de fogo, e certamente o entendimento de como eles se desenvolvem constitui um dos melhores exemplos da frieza analítica subjacente ao conhecimento humano em termos práticos. O primeiro impulso é breve e débil e responde por apenas 1% da radiação térmica da bola de fogo. Consiste de ondas ultravioleta que, a curta distância, podem queimar a pele humana, mas que não ocasionam perigos sérios, exceto para a vista de quem estiver olhando para a direção errada no momento errado. Em compensação, o segundo impulso é gigantesco e responde por toda a força restante da radiação térmica. Dura uma eternidade - talvez uns dois segundos - e consiste sobretudo de luz visível e de emissões em infravermelho. Mesmo em explosões modestas, como a que focalizamos, ele é capaz não só de queimar os olhos e a pele, como também de incendiar os materiais suscetíveis ao fogo e as estruturas de madeira até mais de mil metros além da extensão da bola de fogo. E então vem o golpe. Ele começa com uma onda de choque, com o surgimento da bola de fogo, e se propaga em todas as direções, a princípio a velocidades supersônicas. Em um décimo de segundo, ele ultrapassa o volume da bola de fogo que se expande e irrompe através da sua superfície. A onda de choque aumenta agudamente a pressão e a temperatura da atmosfera, e continua a expandir-se, agora com a velocidade do som, e seu poder de destruição é enorme. Se a bomba tiver explodido no ar, ocorrem, na verdade, duas ondas de choque - a original e, em seguida, o seu reflexo a partir do solo. Aproximadamente um segundo e um quarto após a detonação, a uns quinhentos metros do ponto em que ela ocorre, a onda de reflexo alcança a onda original e com ela se funde, compondo uma única frente vertical. Se a bomba tiver explodido na rua - em Nova York, por exemplo -, a onda secundária não se forma e a frente da onda de choque viaja unificadamente desde o início. De toda maneira, pode-se dizer que os efeitos são similares. As pessoas conseguem suportar picos de pressão superiores aos gerados pela onda de choque, mas as estruturas em que elas vivem não. Três segundos depois da detonação, a onda de choque está a cerca de mil e quinhentos metros do ponto de partida e, no caso de uma bomba de vinte quilotons, quebra as estruturas com um golpe de pressão de ar e as desloca com ventos centrífugos de até trezentos quilômetros por hora. A violência é tal que os próprios incêndios provocados pelo impulso térmico são apagados. Passados dez segundos da detonação, a onda de choque está a quatro quilômetros de distância e sua força, embora bem menor, ainda é capaz de transformar pedaços de vidro em projéteis, de arrancar as portas dos batentes e de derrubar paredes. Segue-se um momento de calma.
A bola de fogo já não é visível, mas ainda está extremamente quente e sobe com vigor pela atmosfera. Em conseqüência dessa subida e do vácuo parcial recém-formado pelo deslocamento do ar, os ventos se invertem e dirigem-se para o epicentro a velocidades de até 320 quilômetros por hora, acabando de destruir as estruturas já danificadas que porventura permaneceram em pé. A segunda onda de ventos levanta poeira e fragmentos na base do típico cogumelo que então se forma. A cidade arrasada comporta-se como gravetos no fogo e, por causa de curtos-circuitos ou de vazamentos de gás, seus escombros começam a arder. Dependendo das condições, os incêndios podem espalhar-se e unificar-se, criando o tipo de tempestade de fogo que se viu em Hiroshima, mas não em Nagasaki. De todo modo, a destruição da cidade é completa e, em locais densamente habitados, como Nova York ou Seul - ou Mumbai -, é provável que centenas de milhares de pessoas venham a morrer.[...]

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