sábado, 14 de março de 2009

ARTIGO- RICARDO GOMES



A mulher e o sonho....
Ricardo Gomes




A Editora Companhia das Letras esta relançando com novo projeto gráfico a obra de Zélia Gattai. Já esta nas livrarias o livro Anarquistas graças a Deus e Senhora dona do baile.
Zélia Gattai na verdade foi uma mulher realizada. Casada com Jorge Amaro, aos 63 anos, lançou seu primeiro livro, Anarquistas graças a Deus, que acabou ganhando notoriedade. Em 1984, A Rede Globo acabou transformando a trama que relata a trajetória e o retrato afetivo da vida em família na São Paulo do início do século XX, em minissérie.
Zélia é filha de anarquistas chegados de Florença, por parte do pai Ernesto, e de católicos originários do Vêneto, da parte da mãe Angelina, a escritora trazia no sangue o calor de seus livros. Trinta e quatro anos depois de se casar com Jorge Amado, a sempre apaixonada Zélia abandona a posição de coadjuvante no mundo literário e experimenta a própria voz para contar a saga de sua família.
Ela nasceu em São Paulo, em 1916, e morreu em Salvador no ano passado. Sua família imigrantes italianos participou do movimento político-operário de fundo anarquista fomentado por imigrantes italianos, espanhóis e portugueses nas primeiras décadas do século XX. Conheceu Jorge Amado em São Paulo,em 1945, enquanto trabalhava pela anistia de presos políticos, casando-se com ele meses depois. Por conta de perseguições ideológicas, o casal viveu na Europa por cerca de cinco anos entre o final dos anos 40 e começo dos anos 50, época em que Zélia estudou língua e civilização francesas em Paris, e conheceu diversos paises do Leste Europeu. Ainda no exílio, dedicou-se a fotografia, registrando momentos importantes da trajetória de Jorge Amado.
Em 1963, com dois filhos, o casal se transferiu do Rio de Janeiro para a casa construída no bairro Rio Vermelho, em Salvador, onde viveria ate a morte de Jorge, em 2001. Nesse ano, Zélia foi eleita para a Academia Brasileira de Letras na sucessão do marido.
Em Anarquistas graças a Deus ficamos conhecendo a intrépida aventura dos imigrantes italianos em busca da terra de sonhos, e o percurso interior da pequena Zélia na capital paulista - uma menina para quem a vida, mesmo nos momentos mais adversos ou indecifráveis, nunca perdeu o encanto. A determinação de seu Ernesto e a paixão pelos automóveis, a convivência diária com os irmãos e dona Angelina, os sábios conselhos da babá Maria Negra, as idas ao cinema, ao circo e à escola, as viagens em grupo, o avanço da cidade e da política - nestas crônicas familiares, vida e imaginação se embaralham, tendo como pano de fundo um Brasil que se moderniza sem, contudo, perder a magia.
Exímia contadora de histórias, Zélia as transforma em instrumento privilegiado para o resgate da memória afetiva. Foi Jorge Amado quem, um dia, lendo um conto de qualidade duvidosa que Zélia rascunhava, pescou essa veia de documental. Apontou-lhe o caminho e mostrou que ela se alimentava de sua rica ascendência familiar. Surge assim a Zélia memorialista, para quem a literatura provém não tanto da invenção, mas do trato apurado da memória e do desfiar cuidadoso, mas sem melindres, da intimidade. Em suas mãos, a literatura se torna, mais que confissão, auscultação do mundo. É tendência para o registro e o testemunho, que cimentam não só um estilo quase clínico de observar a existência, mas uma maneira de existir. Pois é da persistência do espanto que Zélia, em resumo, trata. Se Jorge Amado foi uma espécie de biógrafo involuntário do Brasil, Zélia Gattai se afirma como a grande narradora de nossa história sentimental.
Em suas mãos, a literatura se torna mais que confissão, auscultação do mundo.é tendência para o registro e o testemunho, que cimentam não só um estilo quase clinico de observar a existência,mas uma maneira de existir.
A contadora de historias, em seu livro Senhora dona do baile, que esta ganhando reedição pela Companhia das Letras, traz o relato dos anos de exílio que Zélia Gattai e Jorge Amado passaram na Europa, Senhora dona do baile nos oferece, sob o disfarce da inocência, um vigoroso retrato do pós-guerra. A Guerra Fria racha o mundo ao meio, transformando as diferenças intelectuais e políticas em graves inimizades. São anos tensos, que Zélia fisga com agilidade incomum.
Publicado originalmente em 1984, o livro tem início em 1948, quando Zélia e João Jorge, então com quatro meses, embarcam rumo à Europa para se juntar a Jorge Amado, obrigado a fugir às pressas do Brasil depois de ter seu mandato de deputado federal cassado. Zélia adota, aqui, o papel que mais lhe agrada: o de discreta, mas meticulosa, observadora do real. Autêntica repórter, não deixa escapar nada: a dolorosa travessia do Atlântico, a saudade imensa do lar, as precárias viagens de avião em meio a rigorosas nevascas, a destruição da Europa do Leste, os congressos e compromissos de Jorge, e a convivência com personalidades como Picasso, Jean-Paul Sartre, Simone de Beauvoir, Marc Chagall e muitos outros.
Comovente é o modo como Zélia também privilegia as pequenas experiências e surpresas do dia a dia. Sua alma esquerdista não exclui nem mesmo a desconfiança em relação à seriedade excessiva e ao dogmatismo. Está sempre pronta para rir de si e desconfiar das próprias crenças. O casal se emociona quando, em um museu soviético, vê o berço em que Joseph Stálin dormiu. Esperta, Zélia imediatamente tempera a emoção com uma pitada de ironia, ciente de que é nas frestas do real que a verdade se esconde.
Submerso em um pesado casaco de pele, comprado em Moscou e apelidado de Encouraçado Potenkin, Jorge Amado não afasta sua atenção da mulher um só minuto. Seu olhar secreto zela pela narrativa. Com sua voz altiva e singular e sem medo de ser ofuscada pela presença do marido, Zélia narra o cotidiano do casal na Europa em histórias engraçadas e tocantes, neste livro que é considerado um dos mais importantes de sua carreira.


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