sexta-feira, 17 de abril de 2009

Artigo


Estupro: por que é tão difícil denunciar?
Dora Lorch *



Janaina é uma mulher que acabou de se separar do marido. Seu olhar é opaco e triste. Dá a impressão de que nunca soube o que é felicidade. Mesmo quando conta uma situação feliz, é uma pessoa contida. Veio falar comigo porque não conseguia se aproximar do filho adolescente. Gostava dele, mas não conseguia abraçá-lo, dizer que o amava ou manifestar qualquer afeição. Ela sentia falta dessa proximidade e, certamente, o filho também.
Enquanto eu tentava entender o que impedia as demonstrações de carinho, ela contou que tinha um problema emocional sério: era esquizofrênica. Há anos vinha sendo medicada, porque tinha surtos, especialmente à noite. E frisou que aconteciam quase todas as noites. Fato que estranhei, pois surtos não costumam acontecer com hora marcada.
Comecei a perguntar sobre como tinha sido sua infância, com quem ela tinha sido criada, com quem dormia à noite. Suspeitava de que alguém tivesse abusado dela quando criança. E à medida que a conversa caminhava, a tristeza explodiu: ela tinha sido abusada e estuprada durante anos pelo irmão, um deficiente mental.
Janaína bem que tentou contar para mãe, mas ela não deu importância. Aliás, a mãe achava que a menina tinha de ser compreensiva com seu irmão “incapaz”. Chegamos então à conclusão de que os surtos, na verdade, eram pesadelos diários, lembranças do que havia acontecido. Como essas memórias não tinham canal de expressão, escapavam em forma de sonhos.
Ao reviver aquelas cenas, agora com alguém que a ouvia e apoiava, teve início um processo de re-significado para seu sofrimento. Agora, Janaina podia perceber que tinha sofrido muito, que sua mãe foi injusta, e que, como menina daquela idade, não tinha o que fazer.
Assim, Janaína continuou com sua psicoterapia individual. E, tempos depois, veio me contar que o relacionamento havia melhorado com seus dois filhos.
No fim do semestre, contou que tinha resolvido refazer o casamento. Segundo o Instituto Médico Legal de São Paulo, cerca de 70% das queixas de abuso sexual ocorreram em meninas com idade inferior a 18 anos. Em levantamento realizado de abril a junho de 2002 pelo Sistema Nacional de Combate à Exploração Sexual Infanto-Juvenil, foram feitas 250 denúncias de abuso sexual, sendo 52,86% de abusos cometidos por familiares (dados da Associação Brasileira de Proteção à Infância e Adolescência, 2002). A cada semana, pelo menos três mulheres engravidam depois de terem sido vítimas desse tipo de violência. Cerca de 40% das que são submetidas à cirurgia têm entre 10 e 17 anos[1], na maioria dos casos – 90% deles – os agressores são conhecidos.
Infelizmente, as crianças não percebem o que está acontecendo: elas não conseguem nomear ou saber o que aquilo significa. Muitas só notam que alguma coisa está errada quando se veem banhadas em sangue. Vi mães chorarem em palestras sobre abuso sexual, porque tinham sido abusadas, estupradas e nunca denunciaram. Aliás, nunca sequer conseguiram constatar que foram vítimas de violência. Conheci mulheres adultas que se deram conta da violência que viveram depois que outra pessoa comentou o estupro.
Claro que mexer com as lembranças causa dor, provoca desespero, sensação de que nunca mais a tristeza vai acabar. Mas isso diminui com o tempo. A dor pelo incesto não se apaga. Porém, é possível, com tratamento psicológico adequado, conviver com isso e refazer a vida. É possível até ser feliz.
* Dora Lorch é psicóloga

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