segunda-feira, 15 de outubro de 2007

CLARICE LISPECTOR

MISTERIOS DE CLARICE
Ricardo Gomes

Nas comemorações dos 30 anos da morte da escritora Clarice Lispector, o enigma e os mistérios da escrita feminina continuam ainda sem serem desvendados. Clarice, a mulher que parece brincar com seus personagens, ainda é um doce mistério... como disse a própria escritora: “ Sou um coração batendo no mundo”. E afinal ela chegava a exclamar: “Sou tão misteriosa que não me entendo.”

[...] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?” Clarice Lispector
Clarice Lispector fez de Helen Palmer um conselheira de moda, beleza e, principalmente, de sedução. Em colunas como “Cursinho de emergência”, “Cursinho sobre cabelos” e “Cursinho sobre perfume”, as receitas visavam a conquista do bem-amado. A mulher deveria ter a pele bem cuidada, os olhos brilhantes, os cabelos sedosos e, principalmente, uma personalidade cativante – delicada, alegre, com gestos contidos e muita feminilidade. Nada de vestidos muito justos, saltos muito altos, excesso de jóias ou de pintura que, segundo a colunista, os homens detestam. Helen Palmer orientava sua leitora a ser discreta, pois “chamar a atenção não é a finalidade de uma mulher elegante e inteligente” , como pode ser conferido na coluna publicada em 04 de maio 1960.

Discrição
”Você naturalmente sabe que chamar a atenção não é de bom-tom e dá sempre uma impressão muito má da mulher. Seja pela roupa escandalosa, pelo penteado exótico, pelo andar, pelos modos, pela risada grosseira, seja, enfim, de que maneira for a mulher que chama a atenção sobre a sua pessoa o único troféu que merece é o da vulgaridade. A mulher elegante é discreta. Sua superioridade está nos detalhes cuidados na harmonia das cores, no bom gosto dos acessórios. Se ela é também bonita, a beleza é por si só um ponto de atração para os olhos, sem precisar ser orientada. Os homens, geralmente muito discretos, detestam as mulheres que se destacam demais, onde quer que apareçam. Não apenas pela sua própria maneira de ser, mas também por uma questão de vaidade masculina, já que não lhes é agradável ficar ofuscados ou relegados a um plano inferior.”

“[...] Quando criança, e depois adolescente, fui precoce em muitas coisas. Em sentir um ambiente, por exemplo, em apreender a atmosfera íntima de uma pessoa. Por outro lado, longe de precoce, estava em incrível atraso em relação a outras coisas importantes. Continuo, aliás, atrasada em muitos terrenos. Nada posso fazer: parece que há em mim um lado infantil que não cresce jamais.
Até mais que treze anos, por exemplo, eu estava em atraso quanto ao que os americanos chamam de fatos da vida. Essa expressão se refere à relação profunda de amor entre um homem e uma mulher, da qual nascem os filhos. [...] Depois, com o decorrer de mais tempo, em vez de me sentir escandalizada pelo modo como uma mulher e um homem se unem, passei a achar esse modo de uma grande perfeição. E também de grande delicadeza. Já então eu me transformara numa mocinha alta, pensativa, rebelde, tudo misturado a bastante selvageria e muita timidez.”, assim revela Clarice ao falar sobre a descoberta do amor”.
Bem cedo, a jovem revelava um temperamento bastante impulsivo. Em declarações ela nos confidencia. ““Sou o que se chama de pessoa impulsiva. Como descrever? Acho que assim: vem-me uma idéia ou um sentimento e eu, em vez de refletir sobre o que me veio, ajo quase que imediatamente. O resultado tem sido meio a meio: às vezes acontece que agi sob uma intuição dessas que não falham, às vezes erro completamente, o que prova que não se tratava de intuição, mas de simples infantilidade.
Trata-se de saber se devo prosseguir nos meus impulsos. E até que ponto posso controlá-los. [...] Deverei continuar a acertar e a errar, aceitando os resultados resignadamente? Ou devo lutar e tornar-me uma pessoa mais adulta? E também tenho medo de tornar-me adulta demais: eu perderia um dos prazeres do que é um jogo infantil, do que tantas vezes é uma alegria pura. Vou pensar no assunto. E certamente o resultado ainda virá sob a forma de um impulso. Não sou madura bastante ainda. Ou nunca serei.”
Mas ao mesmo tempo, Clarice sempre se dizia ser uma mulher lúcida. Vejamos o que ela declarou: “Estou sentindo uma clareza tão grande que me anula como pessoa atual e comum: é uma lucidez vazia, como explicar? assim como um cálculo matemático perfeito do qual, no entanto, não se precise. Estou por assim dizer vendo claramente o vazio. E nem entendo aquilo que entendo: pois estou infinitamente maior do que eu mesma, e não me alcanço. Além do quê: que faço dessa lucidez? Sei também que esta minha lucidez pode-se tornar o inferno humano — já me aconteceu antes. Pois sei que — em termos de nossa diária e permanente acomodação resignada à irrealidade — essa clareza de realidade é um risco. Apagai, pois, minha flama, Deus, porque ela não me serve para viver os dias. Ajudai-me a de novo consistir dos modos possíveis. Eu consisto, eu consisto, amém.”.

“Escritora, sim; intelectual, não”
Parecia estranho a muitos de seus críticos, mas Clarice jamais aceitou ser chamada de intelectual. Preferia apenas ser chamada de escritora. E escritora que sempre viveu o dilema de escrever ou não. Declarações suas assim expressam: ““Outra coisa que não parece ser entendida pelos outros é quando me chamam de intelectual e eu digo que não sou. De novo, não se trata de modéstia e sim de uma realidade que nem de longe me fere. Ser intelectual é usar sobretudo a inteligência, o que eu não faço: uso é a intuição, o instinto. Ser intelectual é também ter cultura, e eu sou tão má leitora que agora já sem pudor, digo que não tenho mesmo cultura. Nem sequer li as obras importantes da humanidade. (...)O que sou então? Sou uma pessoa que tem um coração que por vezes percebe, sou uma pessoa que pretendeu pôr em palavras um mundo ininteligível e um mundo impalpável. Sobretudo uma pessoa cujo coração bate de alegria levíssima quando consegue em uma frase dizer alguma coisa sobre a vida humana ou animal.”

“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo”

Um segredo que Clarice nos revela. Viver ou escrever, eis a questão!!!. “Quando comecei a escrever, que desejava eu atingir? Queria escrever alguma coisa que fosse tranqüila e sem modas, alguma coisa como a lembrança de um alto monumento que parece mais alto porque é lembrança. Mas queria, de passagem, ter realmente tocado no monumento. Sinceramente não sei o que simbolizava para mim a palavra monumento. E terminei escrevendo coisas inteiramente diferentes.”
“Não sei mais escrever, perdi o jeito. Mas já vi muita coisa no mundo. Uma delas, e não das menos dolorosas, é ter visto bocas se abrirem para dizer ou talvez apenas balbuciar, e simplesmente não conseguirem. Então eu quereria às vezes dizer o que elas não puderam falar. Não sei mais escrever, porém o fato literário tornou-se aos poucos tão desimportante para mim que não saber escrever talvez seja exatamente o que me salvará da literatura.O que é que se tornou importante para mim? No entanto, o que quer que seja, é através da literatura que poderá talvez se manifestar.”
“Até hoje eu por assim dizer não sabia que se pode não escrever. Gradualmente, gradualmente até que de repente a descoberta tímida: quem sabe, também eu já poderia não escrever. Como é infinitamente mais ambicioso. É quase inalcançável”.
Mas para Clarice, um dos valores era a maternidade. Ser mãe para ela era importante, importantíssimo.

“Há três coisas para as quais eu nasci e para as quais eu dou minha vida. Nasci para amar os outros, nasci para escrever, e nasci para criar meus filhos. O ‘amar os outros’ é tão vasto que inclui até perdão para mim mesma, com o que sobra. As três coisas são tão importantes que minha vida é curta para tanto. Tenho que me apressar, o tempo urge. Não posso perder um minuto do tempo que faz minha vida. Amar os outros é a única salvação individual que conheço: ninguém estará perdido se der amor e às vezes receber amor em troca [...].”

Mas seria interessante a gente começar a analisar a escrita de Clarice, partindo do que ela mesma nos deixou como legado de sua existência. Uma parada para refletir e tentar desvendar este mistério que nem ela mesma entendia. “Uma vez eu irei. Uma vez irei sozinha, sem minha alma dessa vez. O espírito, eu o terei entregue à família e aos amigos com recomendações. Não será difícil cuidar dele, exige pouco, às vezes se alimenta com jornais mesmo. Não será difícil levá-lo ao cinema, quando se vai. Minha alma eu a deixarei, qualquer animal a abrigará: serão férias em outra paisagem, olhando através de qualquer janela dita da alma, qualquer janela de olhos de gato ou de cão. De tigre, eu preferiria. Meu corpo, esse serei obrigada a levar. Mas dir-lhe-ei antes: vem comigo, como única valise, segue-me como um cão. E irei à frente, sozinha, finalmente cega para os erros do mundo, até que talvez encontre no ar algum bólide que me rebente. Não é a violência que eu procuro, mas uma força ainda não classificada mas que nem por isso deixará de existir no mínimo silêncio que se locomove. Nesse instante há muito que o sangue já terá desaparecido. Não sei como explicar que, sem alma, sem espírito, e um corpo morto — serei ainda eu, horrivelmente esperta. Mas dois e dois são quatro e isso é o contrário de uma solução, é beco sem saída, puro problema enrodilhado em si. Para voltar de ‘dois e dois são quatro’ é preciso voltar, fingir saudade, encontrar o espírito entregue aos amigos, e dizer: como você engordou! Satisfeita até o gargalo pelos seres que mais amo. Estou morrendo meu espírito, sinto isso, sinto...”







Nas comemorações dos 30 anos da morte da escritora Clarice Lispector, o enigma e os mistérios da escrita feminina continuam ainda sem serem desvendados. Clarice, a mulher que parece brincar com seus personagens, ainda é um doce mistério... como disse a própria escritora: “ Sou um coração batendo no mundo”. E afinal ela chegava a exclamar: “Sou tão misteriosa que não me entendo.”

[...] Literata também não sou porque não tornei o fato de escrever livros ‘uma profissão’, nem uma ‘carreira’. Escrevi-os só quando espontaneamente me vieram, e só quando eu realmente quis. Sou uma amadora?” Clarice Lispector

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